terça-feira, 19 de março de 2013

Um outro: aquele

"Aunque los azares del juego le interesaban, 
era un mal jugador, porque le desagradaba ganar."

Já tinha sentido isso muito antes, mas foi naquele momento que a coisa lhe pareceu mais séria. Desde que começou a trabalhar, dedicação e seriedade lhe eram comuns, indispensáveis. Era destaque sua postura responsável. Era notório seu envolvimento sincero com as tarefas corriqueiras. Era incomum ser assim.

Os anos no serviço foram-lhe permitindo ouvir muita gente que questionava tanto afinco. Para eles, bastava fazer o que se devia e não procurar pelo em ovo. O importante é andar na linha, respeitar o chefe, cumprir com os deveres e, óbvio, ter o salário na conta ao final do mês. Sendo assim, estava tudo bem. O pacto de mediocridade fazia dele um réu julgado pelos já condenados.

Perturbava-lhe essa ideia de ir vivendo a vida como se ele não tivesse nada a ver com ela. Era vivo o desejo de transformação nele. Era intenso o compromisso. Era pulsante uma esperança de mudar as coisas que lhe chegavam à mão.

Um dia, percebeu que era mesmo uma bobagem danada querer nadar contra a maré. Viu que todo mundo tirava proveito das situações, escolhendo se envolver o mínimo possível no máximo de trabalho. Essa percepção lhe chegou. Essa percepção não lhe parou. Essa percepção lhe fez sabotar aquele código cultural que se revelara a ele.

Escolheu viver os dias que restavam com um interesse sincero pela vida e pelas pessoas. Decidiu fazer o que lhe chegava às mãos como tarefa ainda pessoal. Preferiu ser ele mesmo a vender-se à ilusão de que tudo o que lhe dava significado eram os cifrões depositados na conta bancária.

Olhou nos olhos dos outros. Apertou firme as mãos dos outros. Ouviu atento a voz dos outros. Percebeu a vida dos outros. Ele não se tornou um outro para si mesmo, considerou os outros.

A revolução silenciosa que começou na insistência cotidiana terminou um dia com a sua partida. Sim, gente assim também morre. Não foi um grande herói. Não teve seu nome homenageado por nada. Seus feitos se davam no cotidiano bobo e besta daquele ambiente de trabalho, na vizinhança, na vida comum, só isso.

Carregando o caixão, alguns olhos olharam de novo pra ele. Carregando o caixão, algumas mãos se revezaram, firmando o caminho do esquife para a terra. Carregando o caixão, algum silêncio falava para aquela gente o segredo daquele homem.

Cegueira

A história da cura de um cego de nascença chega a mim, hoje, como um convite à inocência poderosa da fé em Cristo e como um alerta contra a dureza opaca do ceticismo. De um lado, Jesus opera um milagre, restaurando a dignidade de um homem. Do outro, uma comitiva religiosa escrutina os quês e porquês de tudo o que aconteceu. Aqui comigo, soa mais razoável o que disse o sujeito tocado pelo Messias: "Uma coisa sei: eu era cego e agora vejo." (João 9.25).

terça-feira, 5 de março de 2013

Sobra

Nem quis saber se estava faltando espaço pra tanta quinquilharia. Já estava na mão o novo e ali não lhe abandonaria. Levou. Carregou. Era seu. E restou o recém-chegado no depósito de novidades ultrapassadas.

Sair de casa lhe despertava o desejo imenso e intenso de multiplicar as sobras. E, querendo não conviver com seu próprio excesso de conhecidos quereres, resolveu escondê-lo com mais novos. Isso lhe tirava do lar frequentemente, já que suas vontades concentradas e manifestas chamavam-na de velha a todo tempo.