sexta-feira, 31 de outubro de 2014

E a Reforma continua...

Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero afixou na porta da Catedral de Wittenberg, na Alemanha, as 95 Teses (Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências). A ideia era convocar um debate teológico sobre penitência, indulgências e a salvação pela fé. Contudo, a partir dessa publicação, uma série de eventos se deram que conduziram o Cristianismo a um intenso processo de discussão e à sua cisão.
           
Por que Lutero publicou as teses? Desde os primeiros anos no seminário, preparando-se para a vida como padre, ele experimentava uma angústia, sentindo-se indigno da tarefa por ser pecador. Nesse tempo, um mentor lhe aconselhou a fixar sua atenção exclusivamente em Cristo, pois o Redentor sim teria como lhe ofertar direção. Aos 27 anos, Lutero fez uma visita a Roma, centro do Catolicismo mundial, e de lá voltou muito abalado pelo que viu: venda de indulgências, comércio de coisas sagradas, ostentação do clero, corrupção, enfim, práticas tidas por “cristãs”, contudo, muito distantes daquilo que Jesus instruíra. Após essa experiência, ele regressa à Alemanha e se dedica ao estudo e ao ensino bíblicos na Universidade de Wittenberg, buscando entender suas inquietações.

Foi através do dedicado estudo da Bíblia que Martinho Lutero chegou a um esclarecimento acerca daquilo que lhe inquietava. Certa vez, enquanto ele preparava suas aulas, leu o Salmo 22, que aparece no apelo de Cristo na cruz, e percebeu que esse clamor era semelhante ao seu, sentindo-se desamparado por Deus. Tempos depois, estudando o texto da Carta de Paulo aos Romanos, Lutero leu “O justo viverá por fé” (Rm 1.17). Ele mergulhou nesse texto... Finalmente, percebeu que a salvação não era para gerar nos homens medo de Deus, nem para que os dogmas religiosos escravizassem os homens, antes disso, ele entendeu que é apenas a fé que pode salvar. E assim que começa a reforma da vida de Lutero que acaba levando à Reforma Protestante.
           
A Reforma não é apenas um evento histórico que atingiu o Cristianismo no século XVI e ficou por lá. Certamente, as consequências sociais, culturais, econômicas, dentre outras, são flagrantes. Contudo, é fundamental pensar que a Reforma surge com uma proposta de reestruturar a Igreja, com “i” maiúsculo, o Corpo de Jesus Cristo, o povo que confessa Cristo Jesus como Senhor e Salvador, como o caminho, a verdade e a vida. Portanto, a Reforma tem a ver com pessoas.

Assim, é importante olharmos para a Reforma como um chamado que ainda hoje ressoa, convidando-nos a ressaltar a soberania de Deus, lembrar nossa condição pecaminosa e necessidade de salvação, dinamizar nossa vivência da fé e permanecer firmados em Cristo até que ele volte.

As ênfases da Reforma Protestante ficaram conhecidas como “Os 5 Solas”, expressões em latim que enfatizam as convicções essenciais da fé cristã. São elas: Sola Scriptura (“Somente a Escritura”) – Somente a Bíblia é autoridade de fé e de prática; Sola Fide (“Somente a Fé”) – Somos salvos somente pela fé em Cristo; Sola Gratia (“Somente a Graça– Somos salvos somente pela graça de Deus; Solus Christus (“Somente Cristo”): Jesus Cristo somente é nosso Senhor, Salvador e Rei; e Soli Deo Gloria (“Somente para a glória de Deus”) – Vivemos somente para glorificar a Deus.

Os 5 Solas representam um chamado à transformação de nossas vidas e à redescoberta do Evangelho. Percorrendo as Escrituras, nós encontramos as bases dos 5 Solas:

Sola Scriptura
Romanos 15.4; 2 Timóteo 3.16-17

Sola Fide e Sola Gratia
Romanos 1.17; Efésios 2.8

Solus Christus
João 1.1-4; Hebreus 7.22-25; Romanos 8.34; Atos 4.12.
           
Soli Deo Gloria
            1 Coríntios 10.31

Os 5 Solas nos ajudam a:

            1)    ressaltar a soberania de Deus:
Escritura – voz de Deus.
Fé – dom de Deus.
Graça – favor de Deus.
Cristo – Cordeiro de Deus.
Glória – Devida a Deus.

2)  lembrar nossa condição pecaminosa e necessidade de salvação: Pecado é aquilo que é intrínseco ao nosso ser, uma disposição existencial para viver longe de Deus. É diferente de ações (pecados). Estas são consequências da causa maior, o pecado, integrante do ser humano.
Escritura – confronta as mentiras deste mundo.
Fé – reação à condição de rebeldia contra Deus.
Graça – quebra a ideia de barganha com Deus.
Cristo – denuncia nosso egoísmo, revela nossa insuficiência.
Glória – convite ao quebrantamento e à humilhação.

     3)   dinamizar nossa vivência da fé:
Escritura – amparar-nos na verdade, na voz do Senhor.
Fé – conhecer e prosseguir no conhecimento de Deus.
Graça – transformar nossa percepção (gratidão, louvor, perdão etc.).
Cristo – Senhor absoluto que nos chama à missão, ao testemunho, ao serviço.
Glória – “porque dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas” (Rm 11.36).

Como se pode perceber, a Reforma nos desafia a considerar as Escrituras, a fé, a graça, Cristo e a glória divina como fundamentais na nossa caminhada cristã. Em 1 Pedro 3.15, temos uma exortação: “Estejam sempre prontos para responder a qualquer pessoa que pedir que expliquem a esperança que vocês têm.” (NVI). É muito importante saber o que cremos para vivermos uma fé autêntica e darmos testemunho daquilo que o Senhor tem feito em nossas vidas.

A Reforma continua... Sim, ela se faz nova de novo quando, com fé, aproximamo-nos das Escrituras, ouvindo a voz de Deus. A Reforma continua... Sim, ela se faz nova de novo quando experimentamos a graça de Deus. A Reforma continua... Sim, ela se faz nova de novo quando caminhamos com Cristo, ouvindo atentamente a sua voz e nos tornando semelhantes a ele. A Reforma continua... Sim, ela se faz nova de novo quando decidimos viver de modo obediente ao Senhor, santificando o nome de Deus na terra assim como ele é santo no céu, para a glória do Seu santo nome, permanecendo em Cristo até que ele, em breve, volte. 



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A mulher adúltera

Texto bíblico: João 8.1-11.

No contexto narrativo em que a história da mulher adúltera se apresenta, encontramos Jesus sofrendo pressões e perseguições dos religiosos judeus em Jerusalém (conforme se pode ver em Jo 7.14-36). No momento em que todos partem para suas casas (João 7.53) a fim de descansar, pois já era noite, o Messias vai para o Monte das Oliveiras. Afinal de contas, quem se habilitaria a hospedar um homem tão polêmico e perseguido pelos chefes judeus? Quem se comprometeria por acolhê-lo, ofertando-lhe abrigo? Poucos o faziam... E não era interesse do Nazareno promover uma revolta popular contra os poderosos daquele tempo. A revolução que ele veio fazer não era uma revolução temporal, mas sim uma revolução eterna.

Ao passar, provavelmente, a noite em oração no Monte das Oliveiras, ainda de madrugada, Jesus volta ao templo para cumprir sua tarefa de pregador. E ele o faz de modo diligente, comprometido, constante, voltando novamente ao encontro das pessoas que queriam aprender dele e com ele sobre o Reino de Deus.

Podemos perceber e destacar três situações na disposição de Cristo para a pregação. Em primeiro lugar, destaca-se o tempo. Jesus ia logo bem cedo para sua tarefa. Apesar da noite dormida longe, ele começa cedo a servir ao Pai e ao próximo, bem antes da maioria. Em segundo lugar, destaca-se o lugar. Jesus ensinava no templo. Isso não quer dizer que lá era um lugar especial que conservava algum poder sagrado, não, o Messias ensina no templo porque lá era um lugar cheio de gente e disputado por muitos mestres distintos. As pessoas estavam ali, portanto, Jesus fazia questão de estar lá com elas. Em terceiro lugar, destaca-se a postura. O Senhor ensinava assentado, sinalizando autoridade, como faziam os principais mestres daqueles dias. Portanto, o tempo, o espaço e a postura de Cristo ao ensinar o povo mostram e confirmam sua radical obediência ao Pai e seu dedicado amor pelas pessoas.

E é interessante perceber que, apesar de Jesus chegar ao templo bem cedo, as pessoas vinham até ele e lá permaneciam em sua companhia. Cristo atrai as pessoas! Sua presença é contagiante e cativa aqueles que a experimentam. Aprendemos, com essa situação, que aqueles que o buscam cedo o encontram.

Provavelmente, em meio aos que ouviam atentos a Jesus, não havia muitos poderosos, nem pessoas de destaque... Mas a atenção dele se voltava total e irrestritamente para aqueles que, com coração sincero, lá estavam para com ele aprender.

No versículo 3 de nosso texto, os fariseus e os escribas surgem. Contudo, eles não se aproximam de Jesus para ouvi-lo, antes, eles o fazem para coloca-lo à prova, preparando-lhe uma armadilha. Ironicamente, chamam Jesus de “Mestre”. Em João 7.47, os mesmos religiosos tinham-no chamado de enganador. Esses homens trazem até a presença de Jesus uma mulher que tinha sido pega em adultério. Interrompendo o ensino, eles a colocam sozinha diante do Messias, como se ele fosse um juiz. Na tentativa de mostrarem zelo contra o pecado, os fariseus se esqueceram de que também eles são pecadores. É comum que aqueles que se esquecem da sua pecaminosidade sejam severos para os a pecaminosidade dos outros.

Esse zelo dos fariseus se demonstra pelo apego à tradição da lei judaica. Em Levítico 20.10 e em Deuteronômio 22.21-22, havia a determinação da pena de morte por apedrejamento para aqueles que cometessem adultério entre os israelitas. Esse pecado concentra sua vileza por ser uma rebelião do desejo humano, violando a aliança estabelecida por Deus na união entre um homem e uma mulher. Jesus não deixou de tocar nesse assunto quando, no Sermão do Monte (Mateus 5.27-28), disse que o adultério é o próprio olhar malicioso e não apenas o ato em si.

De volta à cena, o Nazareno está em uma cilada. Se ele confirmasse a sentença de morte para aquela mulher, ele contradiria o caráter manso e misericordioso de sua pregação messiânica, além disso, seria condenado pelas autoridades romanas por sentenciar pena de morte sem autorização do império. Se ele liberasse a mulher flagrada em adultério, ele seria condenado pelos judeus por contrariar a lei de Moisés, testemunhando contra ela e contra os profetas que o precederam. De um lado, ele poderia mostrar desconsideração pela lei judaica, de outro, poderia contradizer sua pregação de paz e de misericórdia. O que fazer? Que dilema! Jesus era visto como o “amigo dos pecadores”, mas isso não quer dizer que ele apoiava o pecado. Muito pelo contrário. Ser amigo dos pecadores era o modo pelo qual Cristo demonstrava sua profunda identificação com os homens, mas sua santidade radical o diferenciava dos demais sujeitos.

O método da resposta de Cristo à cilada dos religiosos diante daqueles que com ele aprendiam sobre o Reino de Deus vale a pena ser analisado. Inicialmente, Jesus parece desconsiderar a questão que lhe foi proposta, inclinando-se e escrevendo na terra com o dedo*. Ao não responder imediatamente à questão, Jesus revela conhecer e discernir as intenções daqueles que perguntam. Ele sabia o que se passava nos pensamentos dos seus questionadores. Seus opositores insistiam mais e mais...

Depois dessa pausa e dessa aparente hesitação, Jesus responde: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire a pedra.” Silêncio. A palavra de Cristo revela o coração e a condição pecaminosa de todos aqueles que acusavam a mulher adúltera. Nesse gesto, Cristo destrói a armadilha que lhe foi armada e mantém incorruptível seu caráter e sua pregação. Os religiosos caíram na própria armadilha que armaram para Jesus: eles vieram para acusá-lo, mas saíram acusados por si mesmos. Um após o outro, os acusadores, acusados pelo próprio pecado, retiram-se daquele lugar. A palavra de Cristo nos convence do pecado (Hebreus 4.12). Não adianta fugir dele, pois ele mesmo é o único que pode revelar e sanar nossa pecaminosidade. Ele é o justo juiz! Ele é o nosso redentor! (Jó 19.25)

A mulher fica a sós com Jesus: é com ele que ela tem de lidar agora. “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire a pedra.” Diante dessa palavra, apenas Cristo fica frente a frente com a mulher. Ele é o justo, santo e perfeito. Nele não há pecado. Ele é a justiça de Deus. No meio daquela multidão, apenas Cristo estava habilitado a atirar a primeira pedra, porque só ele não tem pecado. Ele, então, lança a sua “pedra”: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?”. Ela responde: “Ninguém, Senhor!”, em uma resposta reverente, reconhecendo-o como Senhor. Prossegue Jesus: “Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais.” Ela está livre da condenação. Ela está livre do peso do pecado. Ela está livre para viver segundo a vontade do Senhor. Ao dizer “Nem eu tampouco te condeno”, Cristo demonstra graça para com a mulher adúltera e, ao dizer “vai e não peques mais” ele a admoesta sobre como viver segundo a graça (vide também Isaías 55.7 e Romanos 6.1 e 2). Em João 3.17, vemos que a missão do Filho é salvar, não julgar, e Cristo cumpre essa missão. Em Mateus 9.6, vemos que o Filho do Homem tem autoridade para perdoar pecados. Os fariseus que vieram questionar o ministério e a obra de Cristo permitiram que, mais uma vez, ele mostrasse quem de fato ele é.

Aquele que poderia acusar, perdoa. Aquele que poderia condenar, liberta. Aquele que poderia matar, faz reviver. Em seu encontro com a mulher que era adúltera, Jesus se revela como santo e conhecedor dos nossos pecados. Cristo não os nega, antes disso, ele os perdoa. Com o perdão ofertado à pecadora, Cristo a convida para nascer de novo. O perdão não nega o pecado, do contrário, encara-o e soluciona-o, exterminando a condenação e o peso que ele gera, revelando a condição miserável em que estamos e nos convidando à novidade de vida no encontro pessoal com Jesus Cristo.

*Esta é a única ocorrência que relata Jesus escrevendo. Há outras ocorrências, no Antigo Testamento, tratando de Deus escrevendo: Êxodo 20, as tábuas da lei são escritas pelo dedo de Deus, e em Daniel 5, a escritura na parede “MENE, MENE, TEQUEL PARSIM”, declarando a ruína do reinado de Belsazar. Assim, no AT, há associação da escrita ao juízo divino. O que, no caso do NT, pode também ser observável.