Há uns dias atrás, olhei o site do
Movimento Encontrão e tive a felicidade de encontrar um texto de John Stott. Esse texto foi o "discurso final" do trabalho pastoral de Stott no primeiro semestre de 2007. A tradução é de Maicon Stuernagel. Decidi colocá-lo na íntegra pois é extremamente rico. Espero que você possa ser inspirado(a) e desafiado(a) pelas palavras que se seguem. Boa leitura!
O Modelo – tornando-se mais como Cristo
John Stott
Eu me lembro vividamente que, alguns anos atrás, sendo eu ainda um cristão mais novo, a pergunta que me intrigava (e também a alguns de meus amigos) era esta: qual o propósito de Deus para o seu povo? Uma vez que fomos convertidos, salvos e recebemos vida nova em Jesus Cristo, o que vem a seguir? Sabíamos, é claro, da famosa afirmação do catecismo menor de Westminster: que o propósito maior da humanidade é glorificar a Deus e desfrutá-lo eternamente. Sabíamos disto, e acreditávamos nisto. Também experimentávamos algumas afirmações mais curtas, como uma de apenas seis palavras: ame a Deus, ame ao próximo. Mas de alguma forma nenhuma destas, e tampouco quaisquer outras que pudéssemos mencionar, nos satisfaziam plenamente. Sendo assim, gostaria de compartilhar com vocês onde minha mente tem encontrado descanso enquanto eu me aproximo do fim de minha peregrinação na terra: Deus quer que seu povo se torne como Cristo. Semelhança a Cristo é a vontade de Deus para o povo de Deus.
Se isto é verdade, me proponho ao seguinte: primeiro a expor a base bíblica para o chamado à semelhança a Cristo; depois, a dar alguns exemplos do Novo Testamento; e por fim a delinear algumas conclusões práticas. E tudo é relacionado ao assemelhar-se a Cristo.
Em primeiro lugar, portanto, vem a base bíblica para o chamado à semelhança a Cristo. Esta base não se resume a apenas um texto, sendo mais substancial do que se poderia encapsular em um texto somente. Antes, consiste de três textos que faríamos bem em assegurar em nosso pensar e viver cristãos: Romanos 8.29, 2 Coríntios 3:18 e 1 João 3:2. Vejamos brevemente estes três.
Em Romanos 8:29 lemos que Deus predestinou seu povo para ser conforme a imagem do seu Filho, ou seja, para tornar-se como Jesus. Todos nós sabemos que, quando caiu, Adão perdeu muito, embora não tudo, da imagem divina na qual ele tinha sido criado. Mas Deus a restaurou em Cristo. Conformidade com a imagem de Deus significa tornar-se como Jesus; portanto, semelhança a Cristo é o eterno propósito predestinador de Deus.
Meu segundo texto é 2 Coríntios 3:18: “E todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito.” É, portanto, pelo próprio Espírito que em nós habita que estamos sendo transformados com glória cada vez maior – é uma visão magnífica. Neste segundo estágio do tornar-se como Cristo, vocês perceberão que a perspectiva mudou do passado para o presente, da predestinação eterna de Deus para sua transformação presente em nós pelo Espírito Santo. Mudou do propósito eterno de Deus de nos tornar como Cristo para sua ação histórica pelo seu Santo Espírito para transformar-nos à imagem de Jesus.
Isto me traz ao terceiro texto: 1 João 3:2. “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é.” Não sabemos em detalhes o que seremos no último dia, mas sabemos que seremos como Cristo. Nem é realmente necessário que saibamos mais do que isso. Estamos satisfeitos com a gloriosa verdade de que estaremos com Cristo e seremos como Cristo, para sempre. Aqui há três perspectivas – passado, presente e futuro. Todas apontam na mesma direção: há o propósito eterno de Deus – fomos predestinados; há o propósito histórico de Deus – estamos sendo mudados, transformados pelo Espírito Santo; e há o propósito final, ou escatológico, de Deus – seremos como Ele, pois o veremos como Ele é. Todos os três propósitos – o eterno, o histórico e o escatológico – convergem para o mesmo fim da semelhança com Cristo. Este é, eu diria, o propósito de Deus para o povo de Deus. Esta é a base bíblica para o tornar-se como Cristo: este é o propósito de Deus para o povo de Deus.
Quero ir adiante e ilustrar esta verdade com uma série de exemplos do Novo Testamento. Primeiro, creio que é importante que façamos uma afirmação geral, como faz o apóstolo João em 1 João 2:6: “Aquele que afirma que permanece nele, deve andar como ele andou.” Em outras palavras, se afirmamos que somos cristãos, devemos ser como Cristo. Este é o primeiro exemplo do Novo testamento: devemos ser como Cristo em sua encarnação.
É possível que, diante dessa idéia, alguns de vocês se recolham horrorizados. Certamente, vocês me dirão, a encarnação foi um evento absolutamente único; portanto, não haveria a mínima possibilidade de ser imitado! Minha resposta a este questionamento é sim e não. Sim, foi única, na medida em que o Filho de Deus assumiu a nossa humanidade em Jesus de Nazaré, de uma vez por todas e para sempre, para jamais ser repetido. Isto é verdade. Mas há também um outro sentido no qual a encarnação não foi única: a maravilhosa graça de Deus na encarnação de Cristo deve ser seguida por todos nós. A encarnação, neste sentido, não é única, mas universal. Somos chamados a seguir o exemplo de sua imensa humildade em descer do céu para a terra. Assim Paulo pode escrever em Filipenses 2:5-8: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” Devemos ser como Cristo em sua encarnação na maravilhosa auto-humilhação que reside nela.
Em segundo lugar, devemos ser como Cristo em seu serviço. Vamos adiante agora de sua encarnação para sua vida de serviço; de seu nascimento à sua vida, do começo ao fim. Deixe-me convidá-los a virem comigo para o quarto superior onde Jesus passou sua última noite com seus discípulos, conforme registrado no evangelho de João no capítulo 13: “Ele tirou sua capa e colocou uma toalha em volta da cintura, derramou água numa bacia e lavou os pés dos seus discípulos. Quando terminou, voltou ao seu lugar e disse, ‘se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei exemplo,” – percebam a palavra – “para que vocês façam como lhes fiz’.”
Alguns cristãos assumem a ordem de Jesus literalmente e têm uma cerimônia de lava-pés em sua Santa Ceia uma vez ao mês ou na Quinta-Feira Santa – e pode ser que estejam certos em fazê-lo. Mas creio que a maioria de nós transponha a ordem de Jesus culturalmente: que assim como Jesus executou o que seria um trabalho de escravo em sua cultura, também nós não deveríamos presumir nenhuma tarefa por demais humilhante ou degradante, em nossa própria cultura, para que a façamos uns pelos outros.
Em terceiro lugar, devemos ser como Cristo em seu amor. Penso agora particularmente em Efésios 5:2: “e vivam em amor, como também Cristo nos amou e se entregou por nós como oferta e sacrifício de aroma agradável a Deus.” Percebam que o texto contém duas partes. A primeira é viver em amor, uma determinação de que todo o nosso proceder deveria ser caracterizado pelo amor. Mas a segunda parte do versículo fala que Ele se doou por nós, o que não se trata de uma continuidade, mas de um aoristo, uma conjugação no passado, uma referência clara à cruz. Paulo está nos constrangendo a sermos como Cristo em sua morte, a amarmos com o amor auto-doador demonstrado no Calvário. Percebam o que está se desenvolvendo: Paulo está nos constrangendo a sermos como o Cristo da encarnação, a sermos como o Cristo do lava-pés e a sermos como o Cristo da cruz. Estes três eventos da vida de Cristo indicam claramente o que assemelhar-se a Cristo significa na prática.
Em quarto lugar, devemos ser como Cristo em sua persistência paciente. Neste próximo exemplo consideramos não o ensino de Paulo, mas o de Pedro. Cada capítulo da primeira carta de Pedro contém uma alusão ao nosso sofrer como Cristo, sendo o pano de fundo desta carta o começo da perseguição. Particularmente no capítulo 2 de 1 Pedro, o autor estimula os escravos cristãos a, se punidos injustamente, suportar e não revidar o mal com mal. Pois, Pedro prossegue, fomos chamados a isto porque Cristo também sofreu, deixando-nos um exemplo – e aqui está aquela palavra de novo – para que sigamos seus passos. Esse chamado à semelhança a Cristo no sofrimento injusto pode muito bem se tornar cada vez mais relevante à medida que a perseguição cresce em muitas culturas no mundo todo.
Meu quinto e último exemplo do Novo Testamento é que devemos ser como Cristo em sua missão. Tendo olhado para os ensinamentos de Paulo e Pedro, chegamos agora aos ensinamentos de Jesus registrados por João. Em João 20:21 Jesus diz, em oração, “Assim como o Pai me enviou, eu os envio” – esses somos nós. E na sua comissão em João 17 ele diz “Como o Pai me enviou ao mundo, assim ou os envio.” Essas palavras são imensamente significativas. Estão não é apenas a versão de João da Grande Comissão, mas também uma instrução que a missão deles no mundo deveria remeter à missão de Cristo. De que forma? As palavras-chave nesses textos são “enviados ao mundo”. Como Cristo entrou em nosso mundo, assim nós devemos entrar nos mundos de outras pessoas. Isso foi eloqüentemente explicado pelo Arcebispo Michael Ramsey alguns anos atrás: “Nós declaramos e recomendamos a fé somente na medida em que saímos e nos colocamos com simpatia amorosa dentro das dúvidas dos que duvidam, das perguntas dos que perguntam e da solidão dos que perderam o caminho”.
Esse entrar no mundo de outras pessoas é exatamente o que entendemos por evangelismo de encarnação. Toda missão autêntica é missão de encarnação. Devemos ser como Cristo em sua missão. Essas são as cinco principais maneiras pelas quais devemos ser semelhantes a Cristo: na sua encarnação, no seu serviço, no seu amor, na sua persistência e na sua missão.
Rapidamente, gostaria de lhes dar três conseqüências práticas do assemelhar-se a Cristo.
Em primeiro lugar, o assemelhar-se a Cristo e o mistério do sofrimento. Sofrimento é um assunto enorme por si só, e há muitas formas pelas quais os Cristãos tentam entendê-lo. Uma forma se ressalta: que o sofrimento é uma parte do processo de Deus para nos tornar semelhantes a Cristo. Quer soframos de um desapontamento, uma frustração ou alguma outra tragédia dolorosa, devemos tentar encarar a situação à luz de Romanos 8:28-29. De acordo com Romanos 8:28, Deus está sempre trabalhando para o bem de seu povo, e de acordo com Romanos 8:29, esse bom propósito é tornar-nos como Cristo.
Em segundo lugar, semelhança a Cristo e o desafio do evangelismo. Porque será, você já deve ter perguntado, como eu também o fiz, que em muitas situações nosso esforço evangelístico é carregado de fracasso? Diversas razões podem ser dadas e eu não quero simplificar por demais, mas uma razão fundamental é que não nos parecemos com o Cristo que estamos proclamando. John Poulton, que escreveu sobre isto em um pequeno grupo, muito perceptivo, intitulado “Um tipo atual de evangelismo”, escreveu o seguinte: “A pregação mais efetiva vem daqueles que corporificam as coisas que estão dizendo. Eles são a mensagem. Cristãos precisam parecer com o que estão falando. São primariamente, não palavras ou idéias, mas pessoas que comunicam. Autenticidade se transmite. No mais íntimo das pessoas, o que comunica hoje é basicamente autenticidade pessoal.”
Isso é semelhança a Cristo. Deixe-me dar um outro exemplo. Havia um professor hindu na Índia que certa vez identificou um de seus alunos como sendo cristão e lhe disse: “Se vocês cristãos vivessem como Jesus Cristo, a Índia estaria a seus pés amanhã.” Eu acho que a Índia estaria aos seus pés hoje se nós cristãos vivêssemos como Cristo. Do mundo islâmico, o Reverendo Iskandar Jadeed, que era um árabe muçulmano, disse que “se todos os cristãos fossem cristãos – isto é, como Cristo – não haveria mais Islã hoje.”
Isto me leva ao meu terceiro ponto – a semelhança a Cristo e a presença do Espírito. Eu falei muito hoje sobre o assemelhar-se a Cristo, mas isso é possível? Pela nossa própria força, obviamente, não é. Mas Deus nos deu o seu Espírito Santo para habitar em nós, para nos mudar de dentro para fora. William Temple, arcebispo na década de 1940, costumava ilustrar essa questão a partir de Shakespeare: “Não adianta nada me dar uma peça como Hamlet ou Rei Lear e me dizer para escrever uma peça assim. Shakespeare conseguia – eu não. E não adianta nada me mostrar uma vida como a vida de Jesus e me dizer para viver uma vida assim. Jesus conseguia – eu não. Mas se a genialidade de Shakespeare pudesse vir e habitar em mim, então eu poderia escrever uma peça como essas. E se o Espírito pudesse vir para dentro de mim, então eu poderia viver uma vida como a dEle.”
Então eu concluo como um breve sumário do que tentamos dizer um ao outro: o propósito de Deus é nos tornar semelhantes a Cristo. A maneira de Deus para assemelhar-nos a Cristo é nos enchendo com o seu Espírito. Em outras palavras, trata-se de uma conclusão trinitária, que diz respeito ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.