domingo, 29 de julho de 2007

indiviDualismo

Lenta e organizadamente, ele se preparava para deitar. A noite já caíra e, àquele momento, não restava mais nada para se fazer. Pegou uma caixa de papelão e com a prática que lhe era peculiar, transformou-a em um cobertor. Outros papelões, inclusive, serviam-lhe de colchão. Após fazer sua manta, ele retirou as sandálias maltrapilhas, passou as mãos pelos pés, escondeu as sandálias debaixo de sua cama e deitou-se, lançando o papelão sobre si. Cobria-se por completo no canto daquela parede. Não se podia sequer enxergar a sua face.

Agora, ele estava escondido, as pessoas passavam por perto e nem notavam que ali havia uma cama e que alguém naquela cama dormia. Um rapaz passou. Uma mulher passou. Outras pessoas passaram. E eu, do meu ponto de ônibus, continuava a enxergar aquela face escondida pelos papelões e a reconhecer nela um semelhante.

Acredito que, mesmo ficando por ali, eu também passei. Entretanto, perceber e encarar aquela cena naquela noite não foi uma das coisas mais agradáveis que observei na vida. Eu não consegui, simplesmente, desviar o meu olhar e ignorar aquele fato. Quantas vezes, caminhando pelas ruas, à luz do sol ou elétrica, encontrei, quer dizer, passei por pessoas como esse homem que se preparava para dormir... Olhar para eles é incômodo. Observá-los é desafiar o nosso próprio ego.

Senti-me impotente diante daquela situação que me revelava a miséria humana. Naquele momento, eu estava indo para minha casa, tomaria o meu banho, comeria alguma coisa e dormiria na minha cama. Enquanto isso, diariamente, ele e muitos outros estariam pelas ruas.

Esse discurso, com certeza, já é bem conhecido. Mas, poucas vezes, damos ouvido a esse papo. Achamos que não temos responsabilidade alguma, pois, a pobreza, a marginalidade, a corrupção e todos os outros problemas da sociedade não são nossa culpa. Perceba, ainda não falei de agir em prol de melhorias, só de dar um pouco de atenção e você, provavelmente, já está pensando: “Lá vem mais um com aquele papinho!”.

Engraçado, nós nos achamos tão avançados, tão espertos, tão tudo de bom... Você já olhou à sua volta e percebeu a miséria que existe pertinho de você? Não falo só daquela miséria relatada no início do texto, mas da miséria vestida com as grifes do momento, calçada com os sapatos mais transados, andando com o carrinho mais bonitinho, curtindo as festinhas dela semana, levando uma vidinha medíocre cujo objetivo maior é ter dinheiro para perpetuar a própria miséria e a alheia. Percebe como somos conservadores em nossas idéias? Estamos travestidos de modernidade, somos “sepulcros caiados de branco”.

O trecho seguinte é de uma música da banda curitibana Golgotha. Com uma linguagem bem atual, a letra nos mostra o perfil da nossa juventude. Quem não se parece ou não conhece um João Almeida Silva?

João Almeida Silva tinha quase dezenove, pensava em que carro poderia ter. Cursava faculdade, não passava fome, na geladeira sempre tinha o que comer. Morava com mamãe num grande apartamento e almoçava com papai quando sobrava tempo. 'Não posso me queixar, eu tô na vida boa, sou um cara normal, posso até ficar a toa...' Pensava como todo mundo pensa. Vivia como todo mundo vive. Mas tinha um vazio, como todo mundo tem. João bebia pouco, não fumava nada. Não tomava drogas pra não se matar. Jogava uma pelada pra manter a forma, "afinal de contas, tem que se cuidar". Saía com os amigos pra zoar um pouco (sexo só com camisinha pra se assegurar). Tinha uma namorada que era gente boa e pensava sério em um dia se casar. Pensava como todo mundo pensa. Vivia como todo mundo vive. Mas tinha um vazio, como todo mundo tem
(Álbum: [id], Golgotha, faixa 3).

É triste constatar que faço parte de uma geração que age e justifica os seus atos com o vazio de “o importante é ser feliz”. Dominados pelo hedonismo e pelo individualismo, a única preocupação é garantir, custe o que custar, uma felicidade instantânea que se esvai após um tempo fugaz. Depois que o efeito passa, retoma-se a busca pela próxima dose. Não há constância, só se consegue “ficar” com a felicidade.

Será que você ainda se lembra do homem que se cobriu com papelões? Pois é, a vida – que, por incrível que pareça, não é só o que você acha que é – não é tão prazerosa, limpinha, cheirosinha e alegrinha como nós queremos que ela seja.

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